Whisky

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sábado, 30 de agosto de 2014

Turfa

No post sobre maltagem havia dito que o assunto turfa, no processo de secagem do malte, seria visto com muito mais cuidado em outro momento. A turfa merece um capítulo à parte, pois é responsável por alguns dos sabores mais intensos do whisky.

Quando se usa a turfa para a secagem do malte ele é normalmente retirado do piso de maltagem e transferido para um forno, onde é espalhado sobre uma superfície perfurada de metal ou cerâmica, por cima de uma fogueira de turfa. A turfa é usada porque impregna a cevada com sua fumaça de aroma e sabor característicos. O melhor momento é o primeiro estágio da secagem do malte verde porque a fumaça só adere aos grãos enquanto o malte ainda está úmido e pegajoso.

Dentre os aromas e sabores mais característicos e assertivos do whisky escocês  está o de turfa.  De modo geral, os whiskies escoceses se tornaram muito menos turfosos nas últimas décadas do século XX, à medida que fontes alternativas de combustível foram desenvolvidas. Porém, algumas destilarias retornaram à tradição.
O retorno da turfa é um reflexo do interesse dos aficionados.  Os aromas e sabores desse composto orgânico, terrosos, fuliginosos, defumados, com notas de alcatrão, em geral bastante secos, podem ser tão viciantes para os amantes de malte quanto desafiadores para os iniciantes ou os bebedores ocasionais. Perceber a turfa no whisky é sentir o perfume e o gosto do solo da Escócia.

Após a Pequena Era Glacial, que teve início por volta de 1300, restaram poucas árvores nas Terras Altas da Escócia. Porém, havia pântanos de turfas. A turfa era o combustível das Terras Altas e continua a ser empregada em algumas regiões para uso doméstico e na secagem do malte e funcionamento de alambiques. As Lowlands são a parte menos turfosa da Escócia, embora sejam notáveis suas turfeiras elevadas. As Highlands tem charnecas turfosas e turfeiras de coberta, enquanto as ilhas revelam os terrenos mais turfosos, especialmente Orkney e Islay. Alguns pântanos de turfas podem ter 10 mil anos e chegam a mais de 9 metros de profundidade. Extensões amplas da região de Islay são cobertas por pântanos de turfas.


Água corre sobre a turfa a caminho da fábrica de malte, onde pode transferir alguns de seus aromas típicos durante o processo de infusão dos grãos. Uma influência muito mais importante se dá quando a turfa é utilizada como combustível no forno onde o cereal é seco. Aqui as técnicas variam, e tanto a duração como a intensidade do processo influenciam o resultado final. É importante considerar que a fumaça será absorvida pelos grãos enquanto sua superfície estiver úmida. Isso significa que o calor do forno dever ser brando o suficiente para obter o nível exigido de exposição à turfa antes que os grãos percam sua umidade.


Muitos dos componentes que conferem sabor ao whisky não são encontrados na turfa propriamente dita, mas são produzidos dessa queima. Entre estes componentes estão os fenóis. Fenóis são as substâncias que dão sabores defumados ou medicinais ao malte e ao whisky. Os níveis de exposição à turfa são indicados pelo percentual de fenol mensurado em partes por milhão (ppm). Um malte levemente turfado tem de 2 a 10 ppm, enquanto um estilo fortemente turfado pode alcançar de 50 a 60 ppm.  Whiskies com sabor forte de turfas, como o Lagavulin e o Laphroaig, têm cerca de 35 ppm de fenóis. O Ardbeg tem aproximadamente 50 ppm. Com uma concentração de 167 ppm, o Octomore, lançamento de edição limitada da Bruichladdich, é o whisky que possui o mais forte sabor de turfas.


Mas, afinal, o que é turfa? A turfa é vegetação decomposta ao longo de milhares de anos pela água e parcialmente carbonizada por alterações químicas, normalmente encontrada em áreas alagadiças. Após milhões de anos, se submetida a condições de calor e pressão, a turfa acabaria por se tornar carvão. Para que a turfa se desenvolva, o clima deve ser frio e úmido e o solo precisa ser pouco oxigenado, com drenagem ruim. Ao se decompor, a vegetação se encharca e afunda, formando camadas. Turfeiras e áreas pantanosas cobrem de 5% a 8% da massa terrestre do mundo, 90% delas ficam nos climas temperados e frios do hemisfério norte. Na Escócia, as turfeiras abrangem mais de 1 milhão de hectares, ou 12% da superfície total.


As turfeiras de coberta, que receberam esse nome por sua tendência a se espalhar sobre amplas áreas, são a fonte mais importante de turfa para a indústria do whisky, e para o fornecimento de turfa na Escócia em geral.

Tudo que é preciso para “ganhar” a turfa, como se diz, é uma pá, para retirar a superfície; uma ferramenta chamada fal, como uma garra para cortar a turfa; e um forcado para erguer a turfa até a margem, para secar. Hoje, grande parte da extração é feita por máquinas. As máquinas são puxadas por tratores e cortam a turfa na profundidade exigida com uma serra circular ou uma motosserra. O corte manual da turfa é o método tradicional de extração.

Antes que se possa manipular a turfa, ela precisa secar naturalmente. A turfa retirada com máquina requer cerca de um mês, enquanto a turfa cortada manualmente precisa de duas semanas a mais.


As espécies vegetais presentes na turfa contribuem para determinar a influência que ela terá sobre o whisky. A vegetação varia de um lugar para o outro, mas normalmente inclui musgos, ciperáceas, urze e junco. Embora o musgo e a urze sejam os dois componentes mais comuns, entre as outras plantas que contribuem para seu caráter estão a Molina Caerulea, um tipo de capim alto e ereto com flores roxas, o Alecrim-do-Norte, com folhas e coroas muito aromáticas, a Uva-Ursina, um pequeno arbusto com folhas sempre verdes e o Pinheiro Escocês.

Mas, nenhuma outra região produtora de whisky é mais associada à turfa do que Islay, que possui abundantes reservas de onde tirar a sua. Em Islay (e em outros lugares das Terras Altas), a água corre através das turfas e tem cor de chá. Embora os whiskies de algumas destilarias da ilha quase não mostrem qualquer vestígio de turfa, outros se tornaram lendas internacionais pelo caráter turfoso.

Apesar de ser encontrada fora da Escócia, a turfa é raramente empregada na produção de whisky em outras partes do mundo. A Irlanda, rica em turfeiras, abandonou o uso da turfa na época em que a produção de whiskey mudou-se do campo para as cidades, pois era um combustível ineficiente. No Japão, utiliza-se às vezes malte turfado nos whiskies, contudo a maior parte é importada de fábricas de malte da Escócia, que usaram turfa escocesa.


A exposição do malte à turfa acrescenta uma gama de compostos fenólicos para além das notas turfosas e defumadas, incluindo alcatrão, brasa, fogueira, sabão carbólico e um caráter marinho. A turfa da costa apresenta aromas salgados de beira-mar em consonância com o ambiente marinho que a formou.


A turfa antigamente era bastante usada, mas como o carvão acabou se tornando mais disponível com o crescimento do transporte ferroviário, a indústria seguiu a tendência e passou a criar whiskies menos defumados. Em algumas ilhas, como Islay e Skye, a transição para o carvão não aconteceu tão rapidamente, e o uso da turfa prosseguiu. Para a maioria dos destilados produzidos nas ilhas, essa ainda é a norma, ou seja, a secagem da cevada é realizada em fornos típicos ou em pátios de secagem maiores.

Para o meu paladar, prefiro os whiskies que são levemente turfados. Acho que a turfa entrega um sabor marcante, distintivo. Mas deve ter uma medida certa, caso contrário, torna-se muito forte e acaba sendo a protagonista da bebida, camuflando outros aromas e sabores. Tive a oportunidade de degustar um destes exemplares altamente turfados, o Ardbeg 10 anos. 


Não é para iniciantes. Mesmo quem já está acostumado com whiskies turfados sofre um baque quando experimenta este ícone de Islay. No olfato, a primeira impressão é a de cheirar um cinzeiro cheio de bituca de cigarro. No paladar, a impressão é a de lamber este cinzeiro. É possível, após algum tempo, perceber a complexidade do whisky e desvendar outros aromas e sabores por trás do defumado. No entanto, este é que predomina. Como a turfa mereceu um capítulo à parte, este whisky também merece. Iremos falar sobre ele mais adiante. Até a próxima.

Post relacionado: Maltagem


Fontes: o livro do whisky, whisky de a a y, whisky, wikipedia


8 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigado Handerson Ribeiro. Continue acompanhando. Um abraço.

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  2. São uisques muito interessantes os turfados. Talisker e Lagavulim já podem ser encontrados por aqui no Brasil. Eu os aprecio muito, e desde que os descobri acrescentei estes uisques entre os meus prediletos. Ainda assim não consigo deixar de pensar no champú Denorex, ou em gasolina, quando os saboreio.

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    1. Aimar, puxou do fundo do baú o Denorex, kkk. "Parece, mas não é." Realmente os whiskies turfados são bebidas diferenciadas, ao ponto de não serem apreciadas por todo mundo mas ter o seu público cativo e fiel. Quem experimenta e gosta não abandona a linha de sabor. Continue acompanhando. Um abraço.

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  3. Post maravilhoso e super elucidativo!
    Obrigado Michel!
    Eu aprecio whiskies a um tempo mas nada tão firnal,as com tenpo comecei a notar certos aromas e sabores que antes não conseguia notar.
    Sou amante da cerveja também! Pelo visto depois da Bélgica vou acabar visitabdo a Escócia!
    Cheers!!

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    1. Bom que tenha gostado Fabricio. Espero que goste das outras leituras do blog também. O whisky é assim mesmo, aos poucos vamos descobrindo que ele tem muito a oferecer em termos de aromas e sabores. Cerveja idem. Com certeza terá muito o que ver nestas duas viagens no quesito bebidas típicas. Continue acompanhando. Um abraço.

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  4. Depois que degustei os defumados não sinto o mesmo prazer com os não defumados, apesar de jamais dispensar um Macallan, Glenmorangie(sim, gosto dessa delicadeza sim, e bastante) e o clássico Glenfiddich. Minha ordem de preferência: Ardbeg, Laphroaig, Lagavulin, Caol Ila, Talisker e Bowmore

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  5. José, os whiskies turfados realmente são bem diferenciados. Quem gosta, não troca por nenhum outro. Os whiskies citados são os que se encontram de melhor entre os turfados e, atualmente, estou curtindo bastante os whiskies da destilaria Bowmore. Um abraço.

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